21 setembro 2014

Querem perceber lei da cópia privada #118? É entender a velha contribuição audiovisual

Convém ler no original, que está no Projeto de Reforma da Fiscalidade Verde, com formatação e contraditório que aqui não aparecem:

Transferência da contribuição audiovisual para a fatura de serviços com afinidades mais evidentes

Normas relevantes: Lei n.º 30/2003, de 22 de agosto

Posição da Comissão para a Reforma da Fiscalidade Verde: A Comissão considera, conforme teve o ensejo de manifestar no Anteprojeto de Reforma, que o facto de a contribuição para o audiovisual abranger os consumidores de energia elétrica não só não se justifica – na medida em que não existe uma relação direta entre os consumidores de energia elétrica e aqueles que deveriam ser os sujeitos passivos dessa contribuição, como introduz uma discriminação negativa de um tipo de energia pouco poluente – a eletricidade -, face a outros tipos de energia mais poluentes.

A favor da recomendação pronunciaram-se a APREN por a medida permitir “reduzir o ónus de custos não diretamente relacionados com a eletricidade”, bem como a contribuição audiovisual ser “um dos elementos que complica a leitura da fatura de eletricidade, prejudicando a compreensão por partes dos consumidores”.

Igualmente favoravelmente pronunciou-se a ADENE com o argumento adicional de que a contribuição audiovisual “contribui de forma significativa para o aumento do custo da energia sobretudo em setor com elevado n.º de contratos de fornecimento de energia como seja o caso da Iluminação Pública e similares, gerando situações pouco justificáveis de aplicação da taxa”.

No mesmo sentido – de não relação direta entre os consumidores de energia elétrica e os sujeitos passivos da contribuição – pronunciou-se a CAP, considerando “inadmissível (...) a inclusão de todas as instalações de elétricas e não só as de uso doméstico”, chegando mesmo a sugerir que “passe a constar do elenco de Propostas da Comissão em vez de estar incluída apenas como Recomendação”.

Na oportunidade não se pode deixar de referir a especial sensibilidade dos agricultores a esta matéria que levou mesmo à alteração da lei pelo Decreto-Lei n.º 107/2010, de 13 de Outubro, acrescentando uma nova isenção do pagamento da contribuição para “os consumidores não domésticos de energia eléctrica cuja actividade se inclua numa das descritas nos grupos 011 a 015, da divisão 01, da secção A, da Classificação das Actividades Económicas – Revisão 3 (CAE – Ver. 3), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 381/2007, de 14 de Novembro, relativamente aos contadores que permitem a individualização de forma inequívoca da energia consumida nas referidas actividades”. Até então a única existente era a relativa “aos consumidores cujo consumo anual fique abaixo de 400 kWh”.

Contra a recomendação pronunciou-se a Apritel, de cuja pronúncia constam as seguintes conclusões:
A contribuição para o audiovisual destina-se a financiar um bem de interesse geral, elemento do Estado Democrático, motivo por que deve ser suportado por todos os cidadãos, tenham eles afinidade com a radiofusão e televisão ou não;
Com relação direta com o audiovisual os clientes de televisão por subscrição já suportam os custos da estação pública de televisão através do preço pago ao seu fornecedor de televisão, que por sua vez repercute no preço final o custo grossista de remuneração da estação de televisão pública;
O setor das comunicações eletrónicas é muito fortemente onerado com obrigações parafiscais e operacionais de participação na realização de bens públicos;
A existir uma discriminação negativa (que não se vislumbra) comparando a energia elétrica com outras fontes consideradas mais poluentes, essa discriminação deve resolver-se pela extensão das contribuições aos contratos de serviços dessas outras fontes de energia tidas por mais poluentes, e não pela transferência de incidência para as comunicações eletrónicas;
Neste setor das comunicações a correspondência entre uma habitação e um contribuinte não é possível de assegurar, muito pelo contrário, o que torna a medida proposta inexequível. 

Salvo o devido respeito, entende a Comissão serem contraditórios e rebatíveis os argumentos da Apritel, que são subscritos quase ipsis verbis pela CSP – Confederação de Serviços de Portugal, o que demonstrará de seguida.

É certo que os serviços de radiofusão sonora e televisão são serviços públicos que podem ser individualmente utilizados por todos quantos possuíam aparelhos radioreceptores, hoje regra geral substituídos com vantagem através do acesso por internet de telefones móveis e computadores e por maioria de razão televisores, associados ou não a serviços de televisão por subscrição. Alguma doutrina acrescenta que este serviço público “serve à garantia da liberdade de expressão e à defesa de uma informação e garantia plural, logo se impõe como solução lógica o financiamento por via do imposto”.

Como bem salienta a jurisprudência do Tribunal Constitucional, a taxa de radiofusão (antecessora da contribuição audiovisual, valendo para esta o que o tribunal conclui sobre a primeira) “deve ser qualificada como um imposto, uma vez que a exigência do seu pagamento não se relaciona de modo exclusivo sequer com a possibilidade de utilização do serviço público de radiofusão sonora, sendo, como é, a qualidade de consumidor de energia elétrica que obriga ao seu pagamento, embora aquela utilização não tenha a sua fonte em tal consumo e possa estar totalmente desligada dele”. Do mesmo modo pensa a doutrina.

Ora, se é certo que o serviço público de rádio e televisão deve ser financiado por todos os cidadãos como conclui e bem a Apritel, quer eles “sintonizem a estação quer não o façam” numa expressão “emprestada” da doutrina citada, todo e qualquer imposto precisa de regras de incidência objectiva e subjetiva pois é impossível fazer-se pagar do imposto pelos cerca de dez milhões de português, sendo pois necessário recortar o universo de potenciais sujeitos passivos do imposto.

Daí que, como com grande lucidez salientou o mesmo tribunal:
De facto, enquanto os consumidores de 400kWh por ano estão isentos, nenhuma isenção existe para os não possuidores de aparelhos radiorecetores. Ou seja: a relação estabelece-se entre a taxa de radiodifusão e o consumo de eletricidade, e não entre ela e a possibilidade de utilização do serviço de radiodifusão sonora, pois é a qualidade de consumidor de energia elétrica que obriga ao seu pagamento, embora ela não tenha a sua fonte em tal consumo, antes sendo apresentada como contraprestação do serviço de radiofusão sonora… Ora, um tributo só pode qualificar-se como taxa, se a exigência do seu pagamento, mesmo quando feita pela simples possibilidade de utilização de um bem semipúblico e não pela sua utilização efectiva, continuar exclusivamente relacionada com essa utilização. 

Trata-se pois, nas palavras da doutrina que temos vindo a citar “uma aproximação mais ou menos grosseira a essa relação bilateral, tratando-se de contribuições em que se presume o consumo do serviço público a partir de índices variados: a posse do aparelho receptor, por exemplo ou o consumo de energia elétrica”. Ora, é inegável – e as próprias Apritel e CSP não intentam o contrário – que essa “bilateralidade” – que faz o contribuinte suportar essa ablação patrimonial que é o imposto – é mais evidente, senão mesmo perfeita no caso do consumo de TV, Telefone e Internet.

Isso é por demais evidente, porque neste caso não haveria necessidade de quaisquer isenções como as atualmente existentes para os motores de rega agrícola, nem mesmo outras com o mesmo grau de razoabilidade como a já referida da iluminação pública e dos titulares de contratos para energia elétrica a partes comuns de edifícios e explorações agrícolas, que muitas queixas suscitaram junto do Provedor de Justiça . Nem mesmo a isenção para consumos abaixo de 400 kMh, em benefício potencial dos utilizadores de menores rendimentos por ao contrário da energia, os restantes serviços em causa não gozam do mesmo grau de indispensabilidade à vida humana.

Pese embora o exposto, não podemos esquecer que estamos perante um imposto e portanto chegam a ser contraditórios os dois primeiros argumentos. Sendo a contribuição audiovisual um imposto, i.e. uma prestação unilateral, coactiva e sem caráter de sanção não pode considerar-se paga pelos fees de cabo cobrados pela televisão pública aos operadores de televisão por subscrição (que não necessariamente também para os operadores de internet e telefone ou tendo em conta estes aparelhos receptores), que resultam de uma mera operação comercial que em nada se distingue dos restantes operadores privados de televisão.

O contrato de concessão do serviço público de rádio e televisão impõe muitas outras obrigações para além das adstritas aos operadores privados de televisão que não são pagas pelos fees em causa mas através da contribuição audiovisual e até 2013, através de indemnizações compensatórias através do orçamento do Estado, presumivelmente extintas a partir de 2014 com o incremento do valor mensal da primeira de 2,25 euros para 2,65 euros, conforme Lei do Orçamento do Estado para 2014 (Lei n.º 83-C/2014, de 31 de Dezembro).

Igualmente, com o devido respeito, não é aceitável o argumento de que o sector das comunicações electrónicas é muito fortemente onerado com obrigações parafiscais e operacionais, pois infelizmente esse é um lamento comum a todos os sectores e mesmo a todos os contribuintes. Acresce que o verdadeiro contribuinte da contribuição audiovisual são os clientes do sector e não os respetivos operadores e os fatores operacionais são repercutidos no preço, tanto mais não estando a falar de bens transacionáveis em mercados internacionais e portanto de maior competitividade, mas sim de um sector mais protegido e de menor concorrência.

Em conclusão preliminar, não podemos deixar de manifestar concordância de princípio com as declarações atribuídas ao Senhor Secretário de Estado, ainda na hierarquia do Ministério da Economia, pelo jornal de Negócios de 30 de Maio de 2013, “[e]stamos a chegar à conclusão de que se trata de um subsídio cruzado dos consumidores de eletricidade para os de telecomunicação”.

De resto a recomendação efetuada e que aqui reiteramos está de resto de acordo com os princípios orientadores da reforma, em especial aquele que diz que ”A partilha de contribuições sectoriais e locais deverá ser reequilibrada numa perspetiva de eficiência e equidade, tanto na definição da incidência dos tributos como no momento da aplicação das receitas”, pois como salientou a CAP é inadmissível que um dos fatores de menor competitividade das empresas portuguesas, em especial as produtoras de bens transacionáveis, o preço da energia, seja onerado com um custo como a contribuição audiovisual, pelo que a realocação desta conforme recomendado deve proceder.

Aqui chegados, penitencia-se a Comissão por não ter conseguido explicar a discriminação negativa que identificou em desfavor de uma energia limpa – a eletricidade – e que se explica por esta ser onerada pela cobrança da contribuição audiovisual pelas empresas distribuidoras de energia elétrica, obrigação que não é estendida a outras formas de energia, como por exemplo os combustíveis, e que contudo não pode ser suprimido conforme sugerido pela extensão da contribuição aos contratos de serviços dessas outras fontes de energia efetivamente mais poluentes e não apenas tidas por mais poluentes.

É que nestes casos a regra – ao contrário do que acontece nos serviços de energia e de telecomunicações – é de inexistência de contratos e de faturação mensal de serviços com os particulares – verdadeiros sujeitos passivos da contribuição audiovisual, que acedem às estações de serviço sem quaisquer regras de periodicidade, não sendo portanto manter a contribuição audiovisual como um valor fixo, nestes casos.

Concede-se que este argumento é igualmente válido para os chamados tarifários de comunicações móveis sem assinatura, os chamados pré-pagos, que podem ser pagos via multibanco, mas por um lado não se trata da generalidade dos consumidores, e pode-se mesmo eventualmente prescindir de tributar os clientes móveis e tributar apenas os clientes de TV por subscrição e internet (banda larga).

Já de nenhuma relevância é a alegada necessidade de existir uma correspondência unívoca entre uma habitação e um contribuinte, pois estamos na presença de um tributo indireto que pretende tão somente tributar um consumo, hoje o de energia, no futuro presumivelmente o dos serviços de telecomunicação. A verdade é que hoje (injustificadamente) nem necessidade existe de haver uma habitação, pois são tributados armazéns, instalações fabris e agrícolas. E também hoje o mesmo contribuinte é tributado na sua residência habitual e secundária, pelos que nenhum inconveniente haveria de o tributar pelos diferentes contratos em diferentes prestadores, eventualmente alterando o valor do tributo, sendo pelo contrário que contribuiria para o sucesso comercial de contratos triple play ou four player.

Na sua modéstia, porém, a Comissão não tem presunção de ter resposta para tudo, em especial sobre se os efeitos económicos desta mudança seriam efetivamente neutros como estimou, pelo que prudentemente efetuou uma recomendação e não uma proposta, bem como entende deverem ser ouvidos os reguladores envolvidos (Alta Autoridade para a Comunicação Social, ERSE e ANACOM) e com outro detalhe e extensão os operadores de mercado, que o plano de trabalhos desta Comissão não permitiria, até porque é uma Comissão para a Reforma da Fiscalidade Verde e não da Contribuição Audiovisual, que só incidentalmente é uma matéria ambiental e que contende com o crescimento sustentável.

Impõe-se, pois, a constituição de um grupo de trabalho para esta matéria, à semelhança do ocorrido em 2003.