30 agosto 2017

A morte da imprensa é para levar a sério? Agora?


O Paulo Ferreira até tem muita razão neste "O anúncio da morte da imprensa desta vez é para levar a sério" mas, como só fala dos últimos 15 a 20 anos, escapam-lhe dois pormenores anteriores que levaram a esta situação:

1) antes da Google e do Facebook, as empresas de media puseram-se a jeito para serem compradas pelas operadoras de telecomunicações. Isto inviabilizou qualquer confronto para negociar com as operadoras uma partilha de receitas quando estas andavam a vender os pacotes de acesso à Internet acenando com conteúdos gratuitos. Este modelo de partilha (70 ou 80% pelos conteúdos nos contratos...) foi seguido na Coreia do Sul, pelo menos, e viu-se a pujança deste mercado durante várias décadas;

2) no lado da publicidade, um outro erro ocorreu: como as equipas comerciais da imprensa estavam focadas e conheciam melhor as estratégias (e as suas comissões) no papel, o digital foi vendido ao desbarato como acessório. Isto fez baixar o seu valor, enquanto em paralelo surgiam portais ligados às operadoras que - pela sua dimensão e número de utilizadores - desvalorizaram ainda mais o preço da publicidade. O que interessava era obter clientes para os serviços. Os media, pelo explicado no ponto anterior, foram coniventes nisto por ignorância ou pelo interesse em não afrontar as operadoras.



A entrada de Google, Facebook ou Yahoo acelerou este cenário e, num mercado pequeno como o português, fez baixar os preços da publicidade e levá-la ainda mais para a televisão, reduzindo os preços de forma avassaladora e prejudicando os outros meios.

O resultado é este que temos agora mas não se pode dizer que andamos a acertar no Euromilhões após conhecida a chave - várias pessoas anteciparam este cenário (Who killed the newspaper?) , sabendo como a tecnologia estava a evoluir, e várias consultoras contratadas pelos media só o não fizeram porque algumas também trabalhavam para as telcos.

Em resumo, como já se escrevia em 2006, "newspapers in this country are not dying, they are committing suicide"...

[capa da Economist de 26 de Agosto de 2006]

13 junho 2017

Offshow - ou quando as offshores são um show...


O CDS-PP devia ter tino neste caso da retirada de três "offshores" (Jersey, ilha de Man e Uruguai) da lista dos paraísos fiscais por Portugal. É uma opinião.

Cecília Meireles confirmou que o pedido "incidirá apenas na revogação da retirada destes três territórios".

A razão do "apenas" é simples: quando o seu partido estava no governo, em 2011, permitiu a Vítor Gaspar a primeira alteração à portaria de 2004 para a remoção de outros dois países, Chipre e Luxemburgo, sem questionar ou justificar essa decisão com pareceres da Autoridade Tributária.

Curiosamente, em 2014, estava a coligação PSD/CDS-PP no poder quando surgiu o Luxembourg Leaks.

Mais grave para a posição actual do CDS-PP, é que há razões objectivas e de concordância internacional para os três países terem sido retirados.

Como diz a portaria de 2016: "Ora, no caso de Jersey, Ilha de Man e Uruguai, cumpre referir que são todos membros do Fórum Global sobre Transparência e Troca de Informações para efeitos Fiscais e que de acordo com a avaliação realizada por esse organismo da OCDE, Jersey e o Uruguai foram considerados «largely compliant» e a Ilha de Man «compliant»".

Os partidos da maioria governamental deixaram-se embrenhar neste discurso, sem razão aparente e sem que a oposição olhasse para outros assuntos mais importantes. Um exemplo?

A 7 de Junho passado, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais assinou a Convenção Multilateral para Prevenir a Erosão das Bases Tributáveis e a Transferência de Lucros.

O comunicado de imprensa fala de 67 mas foram 76 os países que assinaram este BEPS, que não é um "projeto", como diz o Ministério das Finanças, mas um protocolo de boas práticas dinamizado pela OCDE há mais de uma década (e consistentemente adiado...) para evitar a evasão ou a fraude fiscal.

E o que se sabe da posição de Portugal sobre o BEPS em Portugal? Nada. O que está divulgado pela OCDE não serve para muito.

O secretário de Estado afirmou que "o Governo optou por dar mais relevância à troca de informações porque, em linha com os desenvolvimentos internacionais dos últimos anos, é a melhor forma de descobrir e tributar rendimentos que são ocultados através de regimes de tributação privilegiada. Assumimos essa opção com frontalidade".

Nesta cultura de frontalidade, Rocha Andrade pode revelar o que consta dos 79 tratados bilaterais assinados por Portugal, por exemplo? Em vez de evitar aquele vazio fraseado do "<The Government of the Portuguese Republic and the Government of the [...],> desiring to conclude a convention for the avoidance of double taxation and the prevention of fiscal evasion with respect to taxes on income, <have agreed as follows:>"?

E, já agora, pode o CDS-PP preocupar-se com este assunto? "Apenas" porque é mais importante para o país do que terem saído três de uma lista de 83 países com tributação fiscal privilegiada...

24 janeiro 2017

Como a CIA via Portugal a 26 de Abril de 1974


Em memorando, Kissinger explica a Nixon que o 25 de Abril ocorreu devido às "políticas africanas de Lisboa e a divisões dentro dos militares". Estes, agrupados no MFA, eram "virtualmente desconhecidos, mas são quase certamente oficiais de nível médio devotados ao general António de Spínola".

"Soberbamente organizados e bem liderados, os insurrectos tomaram o governo pela surpresa". Spínola era apontado como próximo Presidente da República, tendo um "tal prestígio que, apesar das divisões nas forças armadas, ele poderá mantê-las sob controlo".

"A reorientação de Portugal fora de África e para a Europa pode ser traumática" mas os EUA não esperavam problemas com Spínola, até porque o golpe de Estado "não colocou os interesses dos EUA em perigo" e podia mesmo ter benefícios a curto prazo, como diminuir "a pressão portuguesa por armas dos EUA para uso nos territórios africanos".

A síntese de Kissinger é baseada num documento do National Security Council, de 26 de Abril, enviado pela CIA a Brent Scowcroft, National Intelligence Officer, onde se explica como, com a excepção da Guiné, "as províncias africanas" ofereciam retorno económico a certos grupos económicos em Portugal, nomeadamente "grandes corporações na metrópole, detidas por umas poucas poderosas famílias, que controlam virtualmente todos os aspectos dos sectores económicos modernos dos territórios, incluindo a indústria local, comércio, banca e plantação agrícola". A situação vinha desde Salazar ou antes, com "um grupo de talvez 40 famílias" a controlarem o poder económico e a terem "um papel decisivo no exercício do poder político", através desse "controlo da economia, propriedade dos media, representação nos corpos legislativos e a sua ligação próxima com responsáveis governamentais de topo".

Como a situação em África era lucrativa para estes "astutos homens de negócios", muitos deles opunham-se a uma saída de Portugal - apesar das operações militares custarem vidas humanas e muito dinheiro. De 1961, quando Portugal tinha 84 mil soldados, apenas 30 mil estavam em África. Em 1973, esses números tinham escalado para 216 mil, com 150 mil destacados para solo africano, com um registo de cerca de 400 mortes. "Apesar de cerca de 60% destas forças serem [desses] territórios - a maioria negros -, o serviço militar causou uma escassez de mão de obra, agravada pela emigração" de jovens portugueses para a Europa.

Do lado financeiro, se os custos em 1960 chegavam aos 105 milhões de dólares, em 1973 eram mais de 521 milhões. Estas "despesas em defesa representaram 27% em 1960, 45% em 1966-68 e 30% em 1973".

O relatório aponta o lançamento a 22 de Fevereiro de 1974 do livro de Spínola, "Portugal e o Futuro" (defendendo uma comunidade lusitana de Estados), e "evidentemente com o apoio" de Marcelo Caetano, como o início da crise.