Quanto mais se mexe na proposta de lei 118 sobre a cópia privada, apresentada pelo Partido Socialista, mais assustador é ver como as leis são preparadas e entregues para aprovação na Assembleia da República. Há algo que não bate certo e não pode ser ignorância, quando muito será falta de tempo para ler documentos.
A proposta 118 explicita que usa “a noção de compensação equitativa, em vez da noção de remuneração equitativa”, tendo por base o acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) (processo C-467/08, Padawan SL c/ SGAE, Terceira Secção, de 21 de Outubro de 2010), “que considerou harmonizada no espaço territorial da UE aquela noção”.
Compensação é mais leve do que retribuição e a ideia subjacente também: os autores não recebem pela cópia privada, são compensados.
Deixando de lado a semântica, o acórdão é de leitura recomendada [com algum tempero] porque aborda e esclarece muitas das questões que se andam a falar por cá sobre a cópia privada. Mas demonstra igualmente que o PS apenas se fixou na compensação e esqueceu pormenores importantes da decisão.
Em síntese, o objectivo era derimir questões entre a Sociedad General de Autores y Editores de España e a Padawan, “concerning the ‘private copying levy’ allegedly owed by Padawan in respect of CD-R, CD-RW, DVD-R and MP3 players marketed by it”.
O tribunal decidiu a três níveis:
1) sobre o conceito de compensação justa (“fair compensation”) – a tal que é usada na pl118;
2) sobre a interpretação do balanceamento justo (“fair balance”), decidindo que tal deve ser “interpreted as meaning that the ‘fair balance’ between the persons concerned means that fair compensation must be calculated on the basis of the criterion of the harm caused to authors of protected works by the introduction of the private copying exception. It is consistent with the requirements of that ‘fair balance’ to provide that persons who have digital reproduction equipment, devices and media and who on that basis, in law or in fact, make that equipment available to private users or provide them with copying services are the persons liable to finance the fair compensation, inasmuch as they are able to pass on to private users the actual burden of financing it”; e, por fim,
3) esclarece ser necessário uma ligação “between the application of the levy intended to finance fair compensation with respect to digital reproduction equipment, devices and media and the deemed use of them for the purposes of private copying. Consequently, the indiscriminate application of the private copying levy, in particular with respect to digital reproduction equipment, devices and media not made available to private users and clearly reserved for uses other than private copying, is incompatible with Directive 2001/29”. É o que separa, na pl118, os equipamentos para usos profissionais e os vendidos ao público em geral.
Ora o que faz a proposta de lei? Esquece o ponto 2 e a necessidade de haver um cálculo “on the basis of the criterion of the harm caused to authors”. Existe algum estudo em Portugal que determine qual o prejuízo dos autores pela cópia provada? Não conheço.
O PS passa sobre o assunto apenas para garantir “assim aos titulares de direitos uma razoável e justa compensação pelos danos sofridos pela prática social da cópia privada”. Mas qual é a estimativa desses danos?
Não se sabe, mas sim quem os paga: “os devedores principais do pagamento das compensações equitativas são os fabricantes e importadores de equipamentos e suportes de reprodução de obras intelectuais”. Mas, para “moralizar o sistema, evitando-se fugas regulares ao cumprimento das obrigações”, são também “devedores os distribuidores, grossistas e retalhistas dos indicados aparelhos”. Uma lei antecipa que fabricantes e importadores possam fugir às suas responsabilidades legais, sabendo sempre que alguém paga por ela “solidariamente”?
Mas a proposta esquece ainda a decisão judicial quanto àqueles que “make that equipment available to private users or provide them with copying services are the persons liable to finance the fair compensation, inasmuch as they are able to pass on to private users the actual burden of financing it”.
Isto não é surreal?
Não, surreal é a proposta de lei prever, “numa outra medida inovadora de largo alcance” (qual?), que as compensações de autores e de artistas não possam ser renunciáveis e objecto de alienação”.
Se bem entendo, um músico faz um espectáculo, gratuito ou de beneficiência, mas a organização tem de pagar a compensação. O músico diz “parem! Eu doei o espectáculo a esta ONG!” A entidade cobradora lamenta mas, por lei, a ONG terá de pagar… É assim?
Surreal, ainda, é a proposta de uma única entidade para gerir a reprografia e a cópia privada, “e não duas”, porque “há a percepção de que no mercado nacional muito dificilmente será possível garantir, com viabilidade económica, duas entidades”. Mas percepção de quem? E porque há-de ser a gestão da compensação da cópia privada um monopólio? E quem será esta entidade: nova ou já existente?
Surreal é de cada vez que se relê aquela proposta, descobrir que não passa de uma enorme trapalhada.