09 janeiro 2004

VITAMEDIAS

Três questões, várias citações e duas lembranças:
QUESTÕES
1) Dois cronistas titulam hoje os seus textos de "sociedade anónima" e falam em "leviandade". Coincidência ou sinal dos tempos em que se quer mais censura sem o explicitar claramente?
2) O PSD e o PP querem avançar rapidamente com propostas para maiores limitações à liberdade de imprensa, quando os acusados "políticos" no processo Casa Pia são maioritariamente socialistas. Os partidos do Governo deixam pairar a ideia de que se estão a precaver - o que é péssimo para a democracia.
3) Porquê vincular os jornalistas ao segredo de justiça e não explicar primeiro porque não é punido quem o não cumpre?

CITAÇÕES
Sociedade anónima: Podemos, obviamente, escolher o caminho de silenciar à força os jornais e as televisões. A vantagem imediata é que substituímos as notícias pelos boatos. A vantagem seguinte é que silenciamos de igual modo a incompetência, a irresponsabilidade e a leviandade de métodos de investigação judicial que eu, pessoalmente, não aceitarei jamais num Estado que se proclama de direito. E assim - julga-se - garantir-se-á a tal "serenidade" de que a justiça precisa e salvar-se-á a própria imagem da justiça. Mas salvar-se-á em benefício de quem?
Sociedade anónima: Não se contesta aqui a necessidade de limites à liberdade de imprensa em processos judiciais para evitar a divulgação de factos que estão em segredo de Justiça. Pelo contrário, essa moralização é necessária. O que se repudia é a leviandade com que se puxa do argumento da censura para evitar a divulgação de notícias com relevância pública e que consubstanciam, no mínimo, incúria de quem conduz a investigação judicial.
Mensagens e Mensageiros: há, nas 13 mil folhas do processo, material infindo para alimentar durante meses sucessivos "casos". Há muito mais cartas anónimas. Há mais dezenas de nomes. Há mais fotografias que foram mostradas aos suspeitos. E, ao que tudo indica, há muitos mais sinais de que foram colocados no processo documentos inúteis, gratuitos ou irrelevantes, cuja divulgação tanto pode lançar lama sobre o nome de muitos inocentes como pode acabar por destruir tudo o que resta de credibilidade à investigação e à acusação. [...]
[N]o caso da liberdade de imprensa o ideal era que nada a regulasse, não existisse lei própria, os profissionais actuassem de acordo com a Constituição e a lei - onde já se estabelece o direito ao bom nome - e os tribunais julgassem em conformidade. Regular mais ou é inútil, pois apenas acrescentará complicação, ou é perigoso, pois pode limitar o exercício de uma das liberdades centrais e inalienáveis em qualquer democracia. Os tribunais e os processos judiciais não são nem podem ser lugares mais fechados ao escrutínio público do que qualquer outra instituição.
(Ainda sobre MENSAGEM/MENSAGEIRO, ler a descoberta de McLuhan por Pacheco Pereira)
Segredo e restrições: Ao DN, o vice-presidente da bancada do PSD Marques Guedes disse que o partido ainda não tem definidas as soluções legislativas a adoptar, mas não exclui rever o segredo de justiça e a lei de liberdade de imprensa.
Entidade reguladora vai apertar controlo: As limitações à liberdade de imprensa preconizadas na quarta-feira pela deputada social democrata Assunção Esteves, presidente da Comissão Parlamentar de Direitos, Liberdades e Garantias, deverão ser concretizadas em dois planos distintos: por um lado, as alterações das regras relativas ao segredo de justiça no Código de Processo Penal (CPP), que a ministra da Justiça se prepara para apresentar na Assembleia da República; por outro, a regulamentação da entidade reguladora da comunicação social, que será criada depois da revisão constitucional extinguir a actual Alta Autoridade para a Comunicação Social. A informação foi dada ao Diário Económico por Guilherme Silva, líder da bancada parlamentar do PSD, que, em vez de "limitações", prefere falar em "responsabilização". A maioria não planeia mexer na Lei de Imprensa.
PS Não Aceita "Centrar as Culpas no Mensageiro": [o líder parlamentar do CDS] Telmo Correia defendeu: "Dentro do conceito de que é preciso clarificar deveres e não só direitos na Constituição, do ponto de vista legislativo, temos de repensar o sistema de regulamentação da comunicação social. Somos contra qualquer atitude censória, mas a liberdade de imprensa tem de ter limites, que são o bom-nome e a dignidade das pessoas."
Dias Loureiro Diz Que o Actual Clima "Só Pode Servir Os Verdadeiros Culpados": "Nós vivemos numa democracia e uma democracia é muito mais do que a sucessão de actos eleitorais e alternância no poder, é um conjunto de costumes e virtudes, uma ética, um código moral. Em nome disso, temos que fazer tudo o que está ao nosso alcance para que a garantia constitucional do direito ao bom nome de cada cidadão seja uma realidade", defendeu.
O social-democrata discorda ainda da necessidade de impor restrições à liberdade de imprensa, defendendo que a lei sobre segredo de justiça tem que ser melhor cumprida.
Director da TVI diz que "liberdade de informação não se discute": Moniz considerou que "de um momento para o outro, parece que se esqueceu que se não tivessem sido os jornalistas o escândalo da Casa Pia nunca seria denunciado" e frisou: "é lastimável assistir a algumas discussões sobre o que alguns consideram violação do segredo de justiça por parte dos jornalistas que em muitas circunstâncias mais não parece ser do que manobras para desviar a atenção do essencial para o acessório. Mesmo reconhecendo que, como qualquer ser humano, um jornalista pode errar, as vantagens de existir uma comunicação social livre numa sociedade democrática e plural, compensam largamente qualquer risco de erro." Para reafirmar: "A liberdade de imprensa é um bem insubstituível."
A nossa liberdade: Coarctar essa liberdade [de informar] é voltar ao 24 de Abril [diz Luís Delgado]
"Mal um nome de um dirigente seu foi envolvido no processo da Casa Pia, o PSD ultrapassou o PS na histeria. E não faz a coisa por menos: mude-se a Constituição e limite-se a liberdade de imprensa ("O Triunfo dos Porcos", Daniel Oliveira, A Capital, 9.1.04)
[T]ambém é verdade que não consta que os Tribunais, a Procuradoria, os escritórios dos advogados, sejam assaltados por jornalistas de mascarilha que devassam processos de noite, à luz de uma lanterna. Por outras palavras: se contam histórias, alguém lhas contou primeiro. (Appio Sottomayor, A Capital, 9.1.04)
Brincar com o fogo: A Comunicação Social injuria, calunia ou mente? Aí estão à mão os tribunais. Um juiz falha? Eis o recurso. Um procurador claudica? Que o Tribunal retire consequências do facto, ou que o Ministério Público resolva o seu problema interno. Um sistema não serve? Erga-se outro.
Não se faça é, como na França de 1793, uma assembleia nacional dita "popular", que ao mesmo tempo que legisla, governa e julga, condena e executa. Daí ao terror, e depois ao despotismo mais ou menos esclarecido, vai um passo.

LEMBRANÇAS
O segredo [de justiça] é violado mais vezes do que seria desejado e também mais vezes se finge que não está a ser violado. Não se pode continuar muito tempo a assistir indiferente a este estado de coisas, é preciso fazer alguma coisa. (Souto Moura, Expresso, 19.1.02)
É óbvio que quando questionados directamente sobre a liberdade de imprensa todos a defendem. Imediatamente se ouve "Liberdade de imprensa? Claro que sim. Censura? Claro que não!! Por favor! Não há coisa pior que a censura!" Mas em seguida afivelam um ar ligeiramente cúmplice e declaram: "Claro que isto não tem nada a ver consigo." E lançam-se numa diatribe contra o mau jornalismo, sendo que na designação de mau jornalismo cabe geralmente o que designam como informação de carácter mais popular e sensacionalista. Esse tal que escreve "porcarias".
É exactamente este conceito sanitário aplicado ao jornalismo que tem servido para legitimar a censura. Vejam por exemplo as declarações de Salazar, em 1937, ao escritor Max Fischer a propósito da censura: "Não sinto, não posso sentir, nenhuma simpatia pela censura. (...) Essa impressão de asfixia que se sente quando um homem, por uma razão qualquer, se lembra de pôr-nos a mão na boca, é horrorosa! Nunca tolerarei que a censura barre o caminho a estudos de ciências, obras de arte, filosofia ou literatura (com excepção, naturalmente, de livros voluntariamente imorais ou pornográficos). (...) As ideias devem poder exprimir-se, sem obstáculos. As ideias e as doutrinas. Mas é preciso não pensar em conceder a mesma licença a certas estreitas discussões pol?ticas e libelos e polémicas, nas quais as injúrias substituem os argumentos. O meu país era e é ainda um doente. É indispensável, para seu repouso, poupá-lo; não se deve gritar inutilmente no quarto de um doente."
Por isso, agora que celebramos o facto de sermos um dos países do mundo onde a imprensa é mais livre, convém frisarmos que a instituição de qualquer censura se faz sempre em nome da erradicação duma qualquer "porcaria". O que muda com o tempo é apenas o conceito de "porcaria". (Helena Matos, Público, 26.10.02)