A RTP emitiu recentemente, pela quarta vez nas últimas décadas, uma nota de serviço a apelar ao "dever de confidencialidade que tem como objetivo 'recomendar o seu rigoroso cumprimento', lembrando que o incumprimento tem sido 'sistemático' e constitui 'infração disciplinar'".
O DN recorda que esta nota de serviço cita uma outra, de 30 de Julho de 2003, onde se referia que se consideram "informações confidenciais as referentes à organização, métodos de trabalho, negócios e atividades da RTP, bem como quaisquer informações respeitantes à situação profissional dos respetivos empregados e colaboradores".
É curioso recordar esse ano. A 1 de Agosto de 2003, o Público revela essa nota de serviço, dizendo que "já existem duas notas internas no mesmo sentido e este novo aviso parece estar relacionado com a recente revelação na imprensa das avaliações dos trabalhadores feitas por uma empresa externa". A "recente revelação" surgiu em "O Independente" e, dado "que muitos nomes conhecidos apareciam com baixíssimas classificações - encaixa-se perfeitamente neste aviso".
2003 foi um ano curioso e é interessante para comparar com a actualidade. Havia um governo PSD e um ministro (Morais Sarmento) a querer controlar a comunicação social, tal como sucede em 2013 com o mesmo partido no governo mas um outro ministro. (Acho que se podem analisar os governos PS e obter resultados semelhantes, pelo que este texto não é um panfleto partidário.)
Em Fevereiro desse ano, surge a polémica Morais Sarmento-Acontece (RTP2 e Carlos Pinto Coelho): segundo o Público desse 14 de Fevereiro, "o ministro afirmou que o canal 2 da RTP, ao contrário do que seria de esperar, "é mais visto pelas classes C e D" do que pelas A e B. Para exemplificar, disse que "o Acontece não está, sequer, entre os mais vistos" e acrescentou, em tom jocoso, que "ficaria mais barato pagar uma volta ao mundo a cada um dos espectadores do Acontece do que produzir o programa"." Pinto Coelho responde sobre os números das audiências, realçando que "é preciso saber que leitura se faz: se simplesmente quantitativa, como a que se faz para saber quantas salsichas saem de uma fábrica por dia, ou se uma leitura qualitativa".
Para quem não leu e não acredita em coincidências, recomendo a viagem no tempo até ao Fevereiro de 2013 neste "Sr. Relvas, importa-se de perceber?"...
A par da preocupação qualitativa ou quantitativa, existia a factualidade geográfica: "A RTP2 é maioritariamente vista nas regiões do Interior (21,5 por cento) e Litoral Centro (21,9), seguidas pelo Litoral Norte (19) e Grande Lisboa (17,9). Bem mais longe, aparecem o Sul (10,5 por cento) e o Grande Porto (9,2 por cento)". Ou seja, segundo os dados da Marktest citados pelo Público, Lisboa e Porto não apareciam, pelo que não era preciso pagar por esse serviço público. Após a TDT e em 2013, há dados sobre esta discrepância geográfica? Há, e é precisamente ao contrário...
Salsichas ou não, o facto é que, como explicou o Expresso, "Administração de RTP determina" e "«Acontece» substituído por magazine a definir".
Mas havia mais, ainda em Fevereiro de 2003: o então presidente da RTP, "Almerindo Marques contou ao PÚBLICO, haveria "empregados da RTP, alguns até em cargos de direcção, que tinham participação no capital ou constituíram empresas fora da televisão cujo objecto social se refere a actividades próximas ou conexas com as da RTP e que com ela poderiam, em certos casos, concorrer". Entre essas actividades estariam também o fornecimento e gestão de equipamento da televisão do Estado, acrescentou o presidente".
Em Junho, foi o caso Fátima Felgueiras, com a entrevista na RTP à autarca do PS. Dizia então o Público: "Quanto ao puxão de orelhas que o ministro Morais Sarmento deu à administração por causa deste assunto, também através do "Expresso", o director de Informação [José Rodrigues dos Santos] diz achar "normal que a classe política comente a RTP".
A 9 de Julho, "trabalhadores da RTP e da RDP manifestaram ontem, na Assembleia da República, alguma inquietação quanto à salvaguarda dos seus direitos na passagem daquelas duas empresas de "media" estatais para uma nova "holding" do Estado".
E depois da confidencialidade?
Cinco dias após a nota de serviço para a confidencialidade, sabe-se que "o programa Acontece, editado e apresentado há quase 10 anos por Carlos Pinto Coelho, não vai regressar aos ecrãs da RTP. "Não haverá mais Acontece. O Acontece morreu", disse ontem o jornalista ao PÚBLICO, após encontros com a administração da RTP".
Recorde-se que a decisão de acabar com o Acontece vinha de Fevereiro anterior, pelo que esteve seis meses a marinar, com notícias recorrentes sobre os custos e (potencial) importância do programa.
A 14 de Agosto, foi a vez de José Barata-Feyo rescindir com a RTP: "Era uma questão de coerência, a partir do momento em que este Governo anunciou os seus planos para o serviço público de TV", justificou", revelando "que passou no total dez anos na "prateleira", onde de resto se encontrava desde 2001, na sequência de um artigo criticando a criação da Portugal Global, um projecto da anterior administração. A ausência de tarefas valeu-lhe nota zero na avaliação de desempenho que a Hay Group realizou aos trabalhadores da RTP - uma avaliação que o jornalista considera ilegal". A tal avaliação que surgiu no Independente...
No início de Setembro, foi apresentado o novo canal A Dois "sem ter um director. Ao mesmo tempo, a actuação do responsável da comissão instaladora do canal, Manuel Falcão, está a suscitar dúvidas legais por aparentemente estar a agir como director sem ter esse estatuto formal. A administração da RTP já ouviu as preocupações da Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) sobre a actuação de Manuel Falcão como director sem ter, formalmente, esse título".
Agora, temos o presidente da RTP e o ministro "desencontrados"...
Ainda em Setembro de 2003, dia 7 e no âmbito de notícias que se presume poderem ser confidenciais por reportarem actividades da empresa, o Público revela: "Num violentíssimo comunicado difundido na sequência da notícia do "Expresso" que associava a RTP a uma presumível rede de abuso sexual de menores com base na Casa Pia de Lisboa, a Comissão de Trabalhadores refere "pessoas que tiveram comportamentos indecorosos e que sairam recentemente da empresa com indemnizações chorudas fingindo ter prestado serviços relevantes à RTP e ao país". A CT afirma não querer ver a generalidade dos trabalhadores "confundidos com uma mão-cheia de suspeitos de crimes bárbaros"."
A porta-voz da Comissão de Trabalhadores da RTP foi substituída quatro dias depois.
Em Outubro, soube-se ainda pelo Público que "o Governo decidiu diminuir o espaço comercial no âmbito do protocolo assinado em Agosto com a RTP e as estações privadas de televisão, que prevê como contrapartida o fornecimento de programas da SIC e TVI para os canais internacionais da RTP e a transmissão de conteúdos de serviço público pelas privadas".
Note-se que a ordem de serviço para o silêncio confidencial é de Julho de 2003 e a diminuição do espaço comercial é assinada em Agosto. O que se passou depois?
Em 2001, admitia-se que o défice da RTP devia rondar os "5 milhões em 2004"... O gráfico usado neste texto foi copiado deste "enorme prejuízo da RTP", que mostra outra realidade.
Na referida notícia do Público de Outubro de 2003, "com tudo somado - 120 milhões da indemnização compensatória, 44,2 milhões do aumento de capital e 27 milhões da contribuição para o audiovisual - ficam quase pagos os custos da RTP", sublinhou o administrador [da RTP Ponce Leão], admitindo que a estação pública ainda fechará o próximo ano com "um ligeiro défice de exploração de 18 milhões de euros" - e "esse défice desaparecerá completamente em 2005".
Confuso? Há mais.
Segundo o Diário Económico de 4 de Novembro de 2003, a "Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) deu um parecer positivo ao projecto de contrato de concessão de serviço público entre o Estado e a RTP, mas colocou reservas em relação à não quantificação das prestações que o Governo deverá dar ao operador público.
Para a AACS «só com quantificação adequada, rigorosa, equilibrada, o contrato será capaz de executar cabalmente a sua função» de comprometer o operador público de televisão a «um serviço de efectiva qualidade», num contrato que «carece de previsão de penalização para o hipotético incumprimento» do Estado".
Como o contrato é entre RTP com o Governo, a confidencialidade dos trabalhadores mantém-se.
A finalizar, só um exemplo dos negócios da RTP, revelado pelo Público a 27 de Novembro de 2003: "A RTP vai vender 20 dos 31 jogos do Euro2004 à SIC e à TVI a preço de custo, no valor de cerca de 200 mil euros por encontro. Os três operadores já chegaram a acordo, mas a palavra final cabe à UER e à UEFA, que terão que autorizar o negócio. A resposta destes organismos deverá chegar ainda esta semana.
A estação pública pagou pelos direitos televisivos dos 31 jogos cerca de 6,5 milhões de euros à União Europeia de Radiodifusão (Eurovisão) - que adquiriu o pacote total à UEFA por 515 milhões. Com o negócio, a RTP irá receber das privadas quatro milhões, numa operação que envolve, portanto, um sublicenciamento a preços de custo. Dos cofres da 5 de Outubro terão que sair 2,5 milhões de euros por 11 jogos.
Nos 200 mil euros a cobrar à SIC e TVI por cada encontro estarão incluídos, além dos direitos televisivos, todas as despesas de produção - que a RTP terá que pagar à empresa EBS2004 - que incluem, entre outros serviços de uma longa lista, posições de comentador (3.750 euros), equipamento de estúdio (10.700), estacionamento (200) - ou seja, é um preço "chave na mão".
Tendo em conta que a TVI pagou cerca de 700 mil euros pelos direitos do jogo inaugural do estádio da Luz, entre o Benfica e o Nacional de Montevideo (Uruguai), a compra dos jogos do Euro2004 é um excelente negócio".
Este é o tipo de negócios que não se podem divulgar a partir da RTP, ao abrigo das notas de serviços para a confidencialidade. E, no entanto, 10 anos é realmente pouco tempo para se perceber que pouco mudou. Se 2003 serve de história, o mais interessante na RTP ainda está para acontecer.
Actualizações:
a 12 de Fevereiro: Presidente da RTP vai explicar plano de reestruturação no Parlamento em Março.
A 13 de Fevereiro: CRÍTICA DA CONFIDENCIALIDADE PURA: É confidencial que o CA ordena o silêncio precisamente ao ser marcado (para 21 de março) o julgamento sobre o processo de reestruturação da RTP, que objetivamente produz um efeito de intimidação sobre os trabalhadores e pode ser vista como uma pressão sobre os tribunais.
a 14 de Fevereiro: “Quem diz que é manifestação ditatorial não percebe nada”: "Foi a reafirmação de uma ordem de 2003, igualmente um período conturbado para a RTP. Chamou-se à atenção das pessoas de que era preciso parcimónia e rigor na maneira como se comunica com o exterior", disse o presidente da RTP
a 17 de Fevereiro: Administração da RTP denunciou os acordos de empresa:
A administração da RTP denunciou na passada sexta-feira, dia 15, três acordos de empresa que tinha convencionado com os vários sindicatos representados na empresa e manifestou a intenção de celebrar um novo acordo adaptado à “actual realidade” da RTP.
As denúncias dos acordos de empresa produzem efeitos a partir de 19 de Fevereiro e de 31 de Março, consoante as convenções em causa, a que se vinculam a RTP e dezenas de organizações sindicais, directa e indirectamente, de acordo com a notificação do conselho de administração da RTP, a que a Lusa teve acesso.
a 18 de Fevereiro: Trabalhadores da RTP informados de rescisões amigáveis:
A Comissão de Trabalhadores informou à agência Lusa que o "Plano de Desenvolvimento e Redimensionamento/Plano de Reestruturação da RTP", que lhe foi entregue, é um documento "hermético e indecifrável", pelo que, adiantou, vai pedir esclarecimentos à administração na reunião agendada para quinta-feira.
O documento, de 13 páginas, admite um programa de rescisões amigáveis para este ano, sem avançar com o número de funcionários abrangidos, acrescentou a CT da RTP.
a 4 de Março: Administração da RTP considera "lamentável" que CT divulgue plano confidencial: Comissão de trabalhadores diz que documento está “recheado de banalidades”, “pobreza” essa que a administração quer esconder.
a 14 de Março: Presidente diz que cada trabalhador da RTP custa 45 mil euros por ano: O presidente da RTP garantiu nesta quinta-feira no Parlamento que “neste momento” não se equaciona qualquer despedimento colectivo na empresa, no âmbito do plano de reestruturação. [mas Reestruturação da RTP admite despedimento colectivo, tal como em Janeiro passado Presidente da RTP admite despedimento colectivo e CT ameaça impugnar reestruturação]
E como não há ideias, a solução é sempre a mesma: o bolso dos contribuintes. Assim, RTP. Administração quer aumento da taxa audiovisual em 2016: A RTP vai estudar já este ano “a possibilidade do aumento da Contribuição Audiovisual (CAV) em 2014”, no entanto, nas projecções financeiras do Plano de Desenvolvimento e Redimensionamento apresentado ontem na Comissão para a Ética, a Cidadania e a Comunicação, o aumento está só contabilizado a partir de 2016
"Cada 45 mil euros poupados é um trabalhador que não sai": O
presidente do conselho de administração da RTP disse esta quinta-feira
que cada trabalhador da empresa representa em média 45 mil euros, pelo
que cada poupança nesse valor representa "um trabalhador que não tem de
sair". [Mas média de quê? Anual? A dois anos?...]
a 16 de Março: RTP pode rescindir com 300 funcionários: Em entrevista ao Expresso, o presidente da RTP defende que é possível ter 300 pessoas a aderir ao plano de rescisões voluntárias e evitar assim um despedimento coletivo.
Comunicado da Comissão de Trabalhadores da RTP:O PLANO QUE RELVAS E PONTE APROVARAM E APRESENTARAM NO PARLAMENTO É ILEGAL: A ideia peregrina de aumentar a Contribuição Audiovisual (CAV) lançaria o odioso sobre os trabalhadores da RTP, a juntar à manipulação estatística dos 45.000 euros que cada um de nós alegadamente custa por ano (!). Mas, no fundo, a ideia de aumentar a CAV serve sobretudo para o CA se eximir a confrontar o Governo com as suas obrigações de financiamento. Se o Governo quer acabar com o serviço público, terá de acabar com esta Constituição. Se quer continuar a dizer-se cumpridor da Constituição, tem de manter um serviço público e tem de pagá-lo.