23 agosto 2014

Cópia privada em 2004

Ao ler esta boa FAQ sobre a cópia privada, a Maria João Nogueira nota nos comentários que, "em 2004 a coisa teve zero amplificação na comunicação social (e os Blogs e redes sociais ainda não existiam)".

Não só os blogues já existiam - e a Maria João sabe disso :)) - como a amplificação sobre a cópia privada não foi de nível zero.

Republico dois textos meus que surgiram no suplemento Computadores, do Público, em Março de 2004, sobre o que se estava a aprovar a nível europeu sobre o assunto (estas são as versões dos textos não editados e não verifiquei se os links estão ainda activos). E não me lembro se outros media escreveram sobre o assunto.

Proposta de directiva sobre propriedade intelectual vai a votos em Estrasburgo
Protestos pela ausência de debate público
Um conjunto de entidades internacionais que pugnam pelas liberdades individuais e direitos do consumidor reúnem-se, na tarde desta segunda-feira, 8 de Março, em frente ao Parlamento Europeu, em Estrasburgo, para reclamar a rejeição de uma directiva sobre a propriedade intelectual.
O objectivo é o de chamar a atenção dos eurodeputados para a votação final da directiva comunitária sobre a aplicação dos direitos da propriedade intelectual, prevista para amanhã no Parlamento da União Europeia e que hoje deverá estar em debate. Pretende-se salientar o "tratamento excessivo de utilizadores e consumidores por violações menores e não comerciais" que a proposta da directiva (ver em www.ipjustice.org/CODE/021604.html) pretende punir.
A directiva tem a oposição da Campaign for an Open Digital Environment (ver www.ipjustice.org/CODE ), que inclui organizações como a IP Justice, a European Digital Rights, a Foundation for Information Policy Research ou a Foundation for a Free Information Infrastructure. No essencial, objecções baseiam-se no facto de os utilizadores serem tidos como infractores com intuitos comerciais mesmo que efectuem cópias com objectivos pessoais e não lucrativos.
Reclamando que a proposta de directiva foi reescrita à revelia da opinião pública desde a sua primeira versão, de Janeiro de 2003, pela relatora francesa Janelly Fourtou - e agora apressada para votação em poucos dias após as emendas efectuadas pelo plenário do Parlamento Europeu, "sacrificando" assim uma consulta pública mais alargada -, os opositores apresentam várias razões para a rejeição da proposta de directiva.
A primeira aponta a sua abrangência, que deveria centrar-se apenas em infracções de intuito comercial, retirando dela certos tipos de direitos de propriedade intelectual, como as patentes. Por outro lado, faltaria uma definição clara - que não existe nos Estados-membros da União Europeia - sobre direitos de propriedade intelectual.
A igualdade de tratamento de consumidores e empresas é igualmente reprovada: "A directiva permite aos advogados de Hollywood contratarem forças de segurança privadas para invadirem as casas dos alegados infractores", refere a IP Justice, mesmo que não existam motivos financeiros ou quaisquer benefícios. Isso será igualmente suficiente para os alegados detentores dos direitos de propriedade intelectual solicitarem a um tribunal o "congelamento" das contas bancárias dos alegados infractores, bem como a obtenção dos dados pessoais de utilizadores de redes de partilha de ficheiros ("peer-to-peer" ou P2P).
Ainda no âmbito desta directiva, segundo a mesma organização, os fornecedores de acesso à Internet poderão ver os seus servidores e outros equipamentos apreendidos ou destruídos sem qualquer audiência judicial por via de uma má utilização perpetrada pelos seus clientes. Por fim, considera-se que directivas com esta importância deveriam ter um debate mais alargado e público. A Foundation for Information Policy Research - que disponibiliza um histórico da preparação da directiva em www.fipr.org/copyright/ipr-enforce-plenary.html - considera que se trata de uma lei que "terá consequências sérias no desenvolvimento da Sociedade da Informação na Europa".

Uma semana depois, o mesmo Computadores regressou ao assunto com este texto:


Entre a pressa na votação e a suspeita de conflito de interesses da relatora
Directiva sobre propriedade intelectual aprovada no PE
A proposta de directiva relativa às medidas e aos procedimentos destinados a assegurar o respeito pelos direitos de propriedade intelectual foi aprovada na semana passada no Parlamento Europeu (PE), em Estrasburgo, apesar das manifestações contrárias - nomeadamente por a relatora do documento ser parte interessada na sua aprovação.
Uma votação de 330 votos a favor, 151 contra e 39 abstenções determinou que, agora, a legislação apenas possa sofrer modificações ao nível do ajustamento nacional pelos 15 países da União Europeia mais os 10 futuros membros.
O texto da proposta foi debatida e votada no PE praticamente sem debate público, sem direito a uma "segunda volta" (ver "Protesto pela Ausência de Debate Público", na edição anterior de Computadores) e sobre a relatora francesa Janelly Fourtou surgiu a suspeita de conflitos de interesse por ser esposa de Jean-René Fourtou, "chief executive officer" da Vivendi Universal, tendo esta directiva um impacto directo no sector do entretenimento.
Os críticos da directiva comparam-na a uma versão "mais dura" da lei norte-americana Digital Millennium Copyright Act (DMCA), ao abrigo da qual têm surgido problemas com criadores de "software" e é usada pela indústria discográfica para perseguir utilizadores que trocam ilegalmente ficheiros musicais. Mas a legislação europeia "faz o DMCA parecer uma brincadeira de crianças", afirmou à Reuters um executivo de uma empresa da Internet. Os Estados-membros têm agora 24 meses para adoptar a directiva.
Esta, no entanto, não se destina apenas à indústria do entretenimento ou aos "downloads" de músicas ou filmes, pois visa igualmente punir as contrafacções de CD, DVD, roupa, malas ou medicamentos. A directiva permite às empresas revistar casas ou pedir aos tribunais o congelamento de contas bancárias para a protecção de bens com marcas registadas que tenham sido falsificados ou roubados. No caso dos "downloads", os consumidores que agirem de "boa-fé" e apenas para seu uso, e sem prosseguirem fins comerciais directos ou indirectos, são deixados em paz. A lei pode igualmente ameaçar a liberdade de expressão em países "como a Espanha, que inclui informação confidencial na definição de propriedade intelectual", referiu a BBC.
O documento prevê que os sectores do entretenimento possam vir a acusar os consumidores por infracções pelo uso não comercial de certos direitos de propriedade intelectual - afirma a IP Justice, uma das entidades que se opõem a esta legislação. Para a Foundation for a Free Information Infrastructure (FFII), o Parlamento Europeu não forneceu qualquer justificação para que consumidores que façam uma cópia privada única possam ser levados a tribunal.
Preparada ao longo de quatro anos, a lei permite ainda que os fornecedores de acesso à Internet divulguem informação pessoal sobre os seus clientes aos sectores do entretenimento pelo uso de redes de partilha de ficheiros (as chamadas "peer-to-peer" ou P2P). Segundo a FFII, permite-se ainda buscas domiciliárias bem como o congelamento de contas bancárias sem necessidade de uma audiência em tribunal - bastando a autorização de uma vaga "autoridade judicial competente" -, apesar de estar previsto apenas para "casos sérios".
Uma das mais veementes críticas à directiva atinge a sua proponente, Janelly Fourtour, por ter interesses directos no assunto. Aliás, a mesma crítica foi efectuada quando ela foi uma das promotoras das patentes sobre o "software" na Europa. Sendo Fourtour casada com o director executivo da Vivendi Universal, um grupo empresarial interessado nestes assuntos, deveria ter-se mantido à margem destas questões - afirmam os críticos.
Na sua intervenção no plenário europeu, Fourtou salientou que, "no momento em que os actos de falsificação e de pirataria progridem exponencialmente, é vital para a nossa economia dotarmo-nos dos instrumentos necessários para assegurar o respeito pelos direitos de propriedade intelectual". A pirataria e as falsificações de bens custaram à União Europeia quase 8 mil milhões de euros anuais entre 1998 e 2001, segundo dados da Comissão Europeia.
Por outro lado, os novos países-membros serão obrigados a adoptar uma directiva sobre a qual não se puderam pronunciar. "Não haverá um segundo debate no Parlamento Europeu, que é o normal para estas leis, pelo que a legislação será aprovada antes da expansão da União Europeia, a 1 de Maio", referia a IDG News Service.
A justificação dada por Fourtou para este "processo original" foi no sentido dos "imperativos do calendário e da urgência, face ao alargamento, em assegurar uma legislação harmonizada, permitindo fazer respeitar paralelamente os direitos de propriedade intelectual, a inovação e a criatividade nos 25 países da Comunidade".
No caso português, a votação no Parlamento sobre a emenda ao texto de Fourtou sobre a abrangência da contrafacção não se limitar apenas a objectivos comerciais obteve posição desfavorável dos eurodeputados comunistas Ilda Figueiredo e Sérgio Ribeiro e dos socialistas António Campos, Maria Carrilho e Paulo Casaca.
Em sentido contrário e pela abrangência da directiva a todos os actos de falsificação ou pirataria votaram os sociais-democratas Teresa Garrett, Regina Bastos, Raquel Cardoso, Carlos Coelho, João Gouveia, Sérgio Marques, Vasco Graça Moura e Pacheco Pereira, os socialistas Luís Marinho, Manuel Santos, Mário Soares, Sérgio Sousa Pinto, Helena Torres Marques e Joaquim Vairinhos, e Ribeiro e Castro, do CDS-PP.