A Pátria, por Guerra Junqueiro, em 1896:
Balanço patriótico:
Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúsio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, bêsta de nora, agùentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalépsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, emfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional,— reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta;
Um clero português, desmoralizado e materialista, liberal e ateu, cujo vaticano é o ministério do reino, e cujos bispos e abades não são mais que a tradução em eclesiástico do fura-vidas que governa o distrito ou do fura-urnas que administra o concelho; e, ao pé dêste clero indígena, um clero jesuítico, estrangeiro ou estrangeirado, exército de sombras, minando, enredando, absorvendo,—pelo púlpito, pela escola, pela oficina, pelo asilo, pelo convento e pelo confissionário,—fôrça superior, cosmopolita, invencível, adaptando-se com elasticidade inteligente a todos os meios e condições [...];
Uma burguesia, cívica e políticamente corrupta até à medula, não discriminando já o bem do mal, sem palavra, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados (?) na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provêm que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro;
Um exército que importa em 6.000 contos, não valendo 60 réis, como elemento de defesa e garantia autonómica;
Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; êste criado de quarto do moderador; e êste, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do país, e exercido ao acaso da herança, pelo primeiro que sai dum ventre,—como da roda duma lotaria;
A Justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara a ponto de fazer dela um saca-rôlhas;
Dois partidos monárquicos, sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, na hora do desastre, de sacrificar à monarquia ou meia libra ou uma gota de sangue, vivendo ambos do mesmo utilitarismo scéptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se amalgamando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguêm deu no parlamento,—de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar; [...]
Instrução miserável, marinha mercante nula, indústria infantil, agricultura rudimentar;
Um regime económico baseado na inscrição e no Brasil, perda de gente e perda de capital, autofagia colectiva, organismo vivendo e morrendo do parasitismo de si próprio;
Liberdade absoluta, neutralizada por uma desigualdade revoltante,—o direito garantido virtualmente na lei, posto, de facto, à mercê dum compadrio de batoteiros, sendo vedado, ainda aos mais orgulhosos e mais fortes, abrir caminho nesta porcaria, sem recorrer à influência tirânica e degradante de qualquer dos bandos partidários;
Uma literatura iconoclasta,—meia dúzia de homens que, no verso e no romance, no panfleto e na história, haviam desmoronado a cambaleante scenografia azul e branca da burguesia de 52, opondo uma arte de sarcasmo, viril e humana, à frandulagem pelintra da literatura oficial, carimbada para a imortalidade do esquecimento com a cruz indelével da ordem mendicante de S. Tiago;
Uma geração nova das escolas, entusiasta, irreverente, revolucionária, destinada, porêm, como as anteriores, viva maré dum instante, a refluir anódina e apática ao charco das conveniências e dos interesses, dela restando apenas, isolados, meia dúzia de homens inflexos e direitos, indenes à podridão contagiosa pela vacina orgânica dum carácter moral excepcionalissíssimo;
E se a isto juntarmos um pessimismo canceroso e corrosivo, minando as almas, cristalizado já em fórmulas banais e populares,—tão bons são uns como os outros, corja de pantomineiros, cambada de ladrões, tudo uma choldra, etc. etc.,—teremos em sintético esbôço a fisionomia da nacionalidade portuguesa no tempo da morte de D. Luís, cujo reinado de paz podre vem dia a dia supurando em gangrenamentos terciários.