Os blogues têm um problema: o que é dito numa discussão verbal de forma salutar, apesar da discórdia intelectual mas rapidamente gerida nesse plano, provoca reacções epidérmicas muitas vezes mal resolvidas entre os envolvidos nos escritos. Não é novidade mas pode, por vezes, ser doloroso, nomeadamente com pessoas que prezamos no aspecto pessoal ou meramente intelectual. Sucedeu neste caso quando dificilmente tento atingir pessoas mas discutir as suas ideias, muito também por má explicitação minha.
Resolvido este patamar desta conversa, continuemos para esclarecimentos necessários.
Diz Manuel Pinto que tem duas salutares discordâncias com as minhas opiniões:
1) "o jornalismo já está mais escrutinado do que qualquer outra profissão ou actividade, e que, por conseguinte, esse escrutínio público não é necessário".
A primeira parte da frase é verdadeira; a segunda não. É obviamente necessário o escrutínio e a análise públicos, cada vez mais, como comprova qualquer pessoa que lê jornais, ouve rádios ou vê televisão. Por isso, ambos concordamos na necessidade de uma análise crítica, séria e independente aos mesmos.
Esse "escrutínio" pode passar, como já referi, pela criação de um instituto de análise dos media, com objectivos que não são preenchidos pelo Obercom ou (apesar dos resultados meritórios, até agora) pelo Clube dos Jornalistas.
Repare-se que o investimento em termos de pessoas e financiamento não é pequeno, razão pela qual (suponho) entidades universitárias de investigação dos media como na Universidade do Minho produzem (ou publicam ou divulgam) poucos resultados.
O objectivo deste tipo de entidades "não é necessariamente "bater", "dar porrada", "malhar"" mas criticar de forma construtiva. Nisso estamos de acordo.
Como estamos na estranha inexistência de "think thanks" nacionais para outras áreas da sociedade, nomeadamente na prospectiva económica. Parece que não queremos analisar de forma independente o que t(iv)emos e para onde vamos (será porque serve para financiar estudos a qualquer governo?)
"Vê agora porque é que não nos entendemos quanto ao conceito de vigilância a que foi tão sensível?" (e, dos comentários, "Apesar de tudo, não creio que sejam questões de "privacidade individual" que estejam aqui em causa".)
Continuamos a não nos entender, possivelmente por questões semânticas. Vigilância e escrutínio, análise, estudo são diferentes. Defendo as últimas, não a primeira, tanto mais quando é proposta em forma individual - e isto seja para um jornalista como para um engenheiro, político, padre ou sem-abrigo. Uma coisa é analisar os media e os jornalistas de forma global, outra é avaliar caso a caso. E isso, no limite e como já exemplifiquei, está obviamente relacionado com as questões da privacidade de qualquer indivíduo.
2) Sobre "a multiplicação de vozes, por exemplo através dos blogues, não contribui para a qualidade do jornalismo", o que eu acho é que, em Portugal, isso ainda não se verificou. Em termos gerais e tanto nos blogues como na comunicação social, perante a quantidade de asneiras, confirmações e desmentidos, citações desavergonhadas sem referência à fonte original, os blogues raramente se pronunciam e são contra-poder. Pelo contrário, apropriam-se do que é escrito na comunicação social tradicional para emitirem opiniões e, nalguns poucos casos, desmentirem ou contradizerem o que é publicado/emitido.
Isto pode ou não melhorar o jornalismo (eu já acreditei nisso mais do que hoje) mas espero que sim.
Como diz e eu concordo, "poderíamos ficar a discutir interminavelmente, cada um a defender o seu ponto de vista. É que não é fácil medir estas coisas", nomeadamente o que é qualidade. Concordo, repito, tal como o faço relativamente a que "haver mais pessoas ou grupos atentos ao espaço público e em particular ao trabalho jornalístico é tendencialmente salutar para o jornalismo e para a sociedade". O que eu contraponho é que nos blogues não se viram ainda resultados fortes, de tendência, mas apenas episódicos.
"Estamos a viver e a intervir - inclusive com esta polémica - no coração de um fenómeno novo, cujo alcance estamos porventura longe de captar em toda a sua dimensão". Certo, talvez seja eu que quero mais e mais depressa.
Também o Luís Santos (aqui e nos comentários) pensa "que não devemos confundir a privacidade que deve ter um jornalista na sua vida não profissional com a privacidade que não pode exigir ter num exercício tão exposto (e por isso socialmente tão influente; e por isso tão desgastante; e por isso, talvez, tão interessante)".
Precisamente mas como é que se evita essa fronteira quando um "blogger" "adoptou" um jornalista? A tentação é demasiado grande.
Já reparou na quantidade de jornalistas da política que escreveram e citaram dirigentes políticos sobre a questão das mulheres, da homossexualidade, dos casamentos "gays", nos últimos tempos (ou embrulhando isso em artigos sobre rumores e boatos na campanha política)? Já reparou que é o formato do "eu sei que tu sabes que sabes que eu sei" sobre certos dirigentes partidários e por isso se pode escrever sem ter de explicitar muito?
A tentação para cair no mau gosto é enorme, a fronteira entre privacidade individual e profissional também - como muito bem sabem os políticos. Se os jornalistas andam na fronteira porque têm um código deontológico, que código abriga os "bloggers"? Apenas o Civil...
Sobre "A ausência de exposição significativa, no passado, resulta, fundamentalmente, de um enquadramento tecnológico não favorável à participação e de níveis de literacia da população mais baixos", discordo. No passado recente, os níveis de participação pública (seleccionada, sem dúvida, mas não deixa de ser opinião pública) nos ambientes mediáticos tem sido enorme (estou a pensar nos fóruns da TSF e certos programas de TV). Os blogues são mais um.
(Sobre isto, não posso deixar de recomendar esta leitura, no feliz regresso do Bloguítica: "Com esta oferta de jornais e televisão, não é de surpreender o enorme interesse que certos blogues têm registado em Portugal. [...]
Existe uma enorme abertura dos jornais [suecos] a artigos de opinião e de debate, e a correio de leitores, que é preenchida com um grande interesse participativo. Não surge, portanto, uma necessidade de blogues como surgiu, manifestamente, em Portugal, sinal evidente da incapacidade, impossibilidade ou falta de vontade dos media de responder à procura do público".)
Não defendo um exercício opaco da profissão. Podem e devem haver formas de escrutínio, de análise do trabalho jornalístico. Mas sejamos realistas e criativos. E os blogues não têm - ou apenas o fizeram parcialmente - contribuído para esse debate crítico, como bem lembra no ponto 2 ("Esta discussão ocorre, por ora, num ambiente corporativo - jornalistas falam sobre jornalistas (dois deles afastaram-se do excercício diário))". Porque será? Não é exactamente porque (alguns) jornalistas se prestam a mostrar em público os seus erros e críticas, sabendo como é estimulante esta participação crítica e criativa de quem os lê/vê/ouve?
Luís Santos discorda "da ideia de que a actividade profissional deve ser entendida como um exercício privado e, portanto, não sujeito a observação (seja de grupo, seja individual)". Eu discordo da análise individual, já o disse, precisamente porque, como diz, já é um "exercício tão exposto". Isto não significa que ele seja escondido: devem existir meios de saber o que um jornalista recebe, os seus rendimentos particulares, o seu partido político, o clube de futebol, os seus gostos sexuais? Porquê só ele? Porque está mais exposto? Caímos na questão dos personagens com mérito que não querem ir para a política por serem escrutinados ao milímetro na sua vida privada. Será isto positivo no caso do jornalismo? Tenho imensas dúvidas.
O conhecimento da vida privada de um jornalista tornará o jornalismo melhor? Não sei.